AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: PARA QUE SERVE?
Terça, 7 de Novembro de 2017
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: PARA QUE SERVE?
Temos um Código Penal de 1940 e diversas leis extravagantes
posteriores que surgiram para adequar a reprimenda criminal do Estado às
necessidades da sociedade no combate à criminalidade, nos aspectos da
prevenção, punição e ressocialização, como é o caso da Lei Maria da Penha,
da Lei dos Crimes Hediondos e da Lei de Tóxicos.
Toda norma penal se sustenta em alguns pilares, dos quais
podemos citar a legalidade, a proporcionalidade, a lesividade, a culpabilidade,
o valor social da pena, dentre outros.
Resumidamente, a ordem jurídica penal serve como um escudo
protetor da sociedade na certeza de que o seu violador poderá sofrer o poder
de punição exercido pelo Estado.
Os juízes brasileiros, cuja média de idade é de quarenta e cinco
anos, segundo pesquisa de perfil realizada pelo CNJ, no ano de 2013, denota
que a sua grande maioria tem como desafio profissional contemporâneo, na
qualidade de agente político não partidário, a missão de contribuir para a
efetivação dos direitos sociais previstos na nova ordem jurídica da Constituição
Republicana de 1988, para dar concretude aos valores do Estado de Direito ao
solucionar litígios. Desse modo, o juiz como aplicador de normas desempenha
atividade política e judicial sob o império do Direito.
É no Poder Legislativo que a sociedade é diretamente ouvida por
seus representantes constituídos nos anseios de criar as leis, inclusive no
conteúdo de direito penal e processo penal, cabendo aos juízes apenas a sua
interpretação.
Pois bem. Surgem então as AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA,
através de Resolução n. 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça, a qual
dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no
prazo de 24 horas, ocasião em que será decidida sobre a manutenção de sua
prisão, sua liberdade, ou medidas cautelares, bem como a adoção de outras
medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.
Contudo, respeitados os entendimentos contrários, tem-se que a
chamada audiência de custódia não cumpre a finalidade a que foi proposta
nem representa, em sua configuração atual, incremento aos direitos
fundamentais e à sociedade, pelos motivos já expostos na nota técnica
divulgada pela ESMEG / ASMEGO e pelas razões abaixo:
- Da inconstitucionalidade ao ser prevista por resolução do CNJ:
Segundo a Constituição da República (CRFB/1988), o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) é órgão do Poder Judiciário (art. 92, inciso I-A) sendo que lhe
compete essencialmente exercer controle da atuação administrativa e
financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos
juízes (art. 103-B, §4º). Assim sendo, inexiste previsão constitucional para que
o CNJ regulamente por resolução (ato normativo) as audiências de custódia
que se apresentam, não como forma de controle administrativo ou financeiro e
dos deveres dos magistrados, mas sim como regra de processo penal, a qual
deve ser regulada por lei federal por ser competência privativa da União legislar
sobre direito processual (art. 22, inciso I, da CRFB/1988).
- Da proteção dos direitos humanos e o papel do juiz:
Os Tratados Internacionais nos quais se inspira (o Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos de 1966 e Pacto de São José da Costa Rica de 1969)
referem-se a uma época de turbulência política na América Latina, em que
vivíamos em plena ditadura militar. Esse tempo já passou. Não há mais
necessidade de o cidadão ser protegido da truculência policial, conforme
outrora. Aliás, não existem números seguros, indicando que as audiências de
custódia se mostraram eficientes no combate à tortura. Existem apenas
números referentes aos relatos de presos de supostas agressões físicas
sofridas, motivados no afã de serem soltos, ainda sem nenhuma apuração,
relatos que, inevitavelmente, ensejarão a instauração de procedimentos
criminais e administrativos contra os policiais, em observância ao devido
processo legal. Nesse desiderato, enfatiza-se que as audiências de custódia,
além de prestigiarem somente a palavra do preso e de desacreditarem todos
os agentes de segurança envolvidos na prisão, colocam o juiz numa posição
bastante desconfortável, porque exige que atue como uma espécie de
investigador no início da persecução penal, malferindo o sistema acusatório
adotado pela legislação brasileira. Ademais, não é papel do julgador exercer o
controle externo da atividade policial. Desse modo, o aparato estatal se volta
integralmente ao preso, sem idêntica preocupação com a vítima, que sequer
terá atendimento prioritário na rede pública de saúde, caso esteja ferida, e
muito menos será ouvida pelo juiz nesta oportunidade.
- Do controle da atividade policial:
Verifica-se, ainda, que referidas audiências no formato em que foram
idealizadas partem de uma premissa equivocada, qual seja, de que as demais
carreiras jurídicas não têm se desincumbido a contento de suas funções no que
diz respeito ao combate à tortura, e que somente o juiz estaria habilitado para
essa missão. Ocorre que, o controle externo da atividade policial é exercido
pelo Ministério Público, como missão constitucional, e uma vez deflagrada a
suspeição de qualquer ato de agente policial se faz necessário a investigação e
o devido processo legal. Portanto, a audiência de custódia não se mostra
eficaz, porque não cabe aos juízes investigar e nem examinar diante dos
indícios de tortura. O papel do juiz criminal na ordem jurídica se inicia no
processo penal, seja ele de natureza cautelar, de conhecimento ou de
execução. Cabendo às forças policiais do Estado o papel investigativo, no caso
da polícia judiciária e ostensivo de segurança, no caso da militar, suportando
em casos de abuso, a devida investigação e o devido processo legal,
assegurado à todas as pessoas e também aos agentes públicos. Desprezar a
palavra inicial dos policiais que efetuaram a prisão, e a vedação pelo juiz de
perquirir ao preso sobre as circunstâncias do fato ou até mesmo de ouvir a
vítima, sob a ótica de proteção da pessoa presa dos agentes policiais não se
mostra razoável.
- Da eficiência do ato denominado audiência de custódia:
O sistema processual penal vigente já prevê outro mecanismo de controle da
legalidade das prisões, ao exigir a comunicação destas em 24 horas ao juiz
especificamente para essa finalidade (artigo 306, § 1º, do CPP). Desse modo,
sustentamos que não há nenhuma necessidade de que o preso seja
apresentado pessoalmente ao juiz, porquanto a sua presença física em nada
alterará os requisitos e fundamentos da prisão preventiva, caso presentes. Ao
contrário, com o incremento dessas audiências na pauta dos juízes criminais
haverá menos tempo a se dedicar ao julgamento dos processos criminais, que
inevitavelmente serão cada vez mais atingidos pelo instituto da prescrição. Na
contramão dessa medida, se verificam outras medidas mais eficientes e quiçá
menos onerosas ao aparato estatal, tais como monitoramento em viaturas
policiais, em delegacias ou a obrigatoriedade da defensoria pública
acompanhar o preso quando da sua atuação em flagrante, para resguardar os
direitos da pessoa presa, resguardando a isenção do julgador que sequer
possui qualificação técnica para apurar qualquer lesão, o que somente cabe à
um médico perito.
- Da falta de estrutura para sua realização:
Muitas comarcas pelo interior de Goiás e do Brasil encontram-se desprovidas
de juiz e/ou promotor titulares. Isso faz com que juízes e promotores
respondam por mais de uma comarca, o que inviabiliza a realização da
audiência de custódia no exíguo prazo de 24h após a prisão. O mesmo
acontece nos plantões regionais de fins de semana e feriados nos quais um
único juiz responde por várias comarcas simultaneamente. Isso porque resta
inviável o juiz se deslocar diariamente entre todas as comarcas apenas para
tais audiências, assim como o baixo efetivo das Polícias Civil e Militar impedem
o transporte do preso até o juiz de outra comarca. Outrossim, nenhuma
comarca do interior possui defensoria pública instalada, sendo certo que a
realização da audiência de custódia sem a presença de um defensor público
pode trazer prejuízos processuais ao preso. Digno de nota é apontar que o
artigo 98 do Ato das Disposições Finais Constitucionais Transitórias,
acrescentado por emenda constitucional em 2014, estipula um prazo de oito
anos para que os Estados atendam à determinação de possuir um defensor
público em cada unidade jurisdicional e tal medida foi desconsiderada para a
implantação das audiências de custódia. Soma-se a isso a diminuição do
efetivo policial, com prejuízo à segurança pública em favor de uma medida
claramente ineficiente.
- Das consequências práticas de sua implementação:
Durante o Julgamento da ADPF nº 347 pelo STF, a qual serviu de inspiração
para a Resolução que trata das audiências de custódia foi destacado que as
audiências se fazem necessárias porque há uma cultura no Brasil, violadora de
direitos humanos, assertiva com qual a não concordamos, porque,
considerando os dados do CNJ de que possuímos em torno de 600 mil
pessoas presas, e, ainda, que o Brasil é o quinto país mais populoso do
mundo, com mais de 200 milhões de habitantes, significa que apenas 0,3% da
população brasileira se encontra encarcerada. Esse percentual é
significativamente baixo, mormente considerando que nesse cálculo estão
incluídos os presos dos regimes semiaberto e aberto e do regime domiciliar.
Esse número, aliás, é menor que o verificado nos EUA, Cuba, Rússia e
Uruguai. Em contrapartida registramos mais 56 mil homicídios ao ano –
situação pior que a guerra civil do Iraque, que registrou entre 2014 e 2015, 19
mil mortes. E é por tais dados que defende-se que o custo social da soltura
indiscriminada de presos é infinitamente mais elevado.
– Do objetivo do combate à cultura do encarceramento:
Acreditamos pelas razões expostas que as audiências de custódia servirão de
estímulo ao aumento da criminalidade, porque reconhecemos no Poder
Judiciário, como integrante do Estado Republicano, o objetivo de construir uma
sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da marginalização, livre de
qualquer discriminação, para promover o bem de todos, observando a
aplicação da ordem jurídica. Por isso, defendemos a rejeição do Projeto de Lei
que tramita no Senado Federal (PLS 554/2011). Esperamos que o Supremo
Tribunal Federal reflua da liminar concedida na ADPF nº 347, e que o CNJ
desobrigue os juízes de realizar as supracitadas audiências, pelo menos,
enquanto não houver estrutura nas comarcas para tanto. Aliás, é bom que se
registre que como se assegura na Constituição Federal, defendemos que os
juízes são livres em suas convicções e decisões, obrigando-se à
fundamentação, e ao estrito respeito da ordem jurídica, livre de qualquer rótulo
ainda que seja o da imputação da “cultura do encarceramento”, com o qual não
comungamos por reconhecer que tal diagnóstico não se justifica diante da
insegurança pública que assola nosso país e dos parcos investimentos
públicos que são feitos pelo Poder Executivo nessa área, impedindo a justa
ressocialização e o cumprimento adequado da pena.
POR EDUARDO PEREZ, FLÁVIA ZUZA, MARCOS BOECHAT, PLACIDINA
PIRES, JUÍZES GOIANOS MARÇO DE 2016